ENTREVISTA:
SALTO PARA O FUTURO III
Magda Soares
Realizada em: 21/9/2009
Atuação: Professora
titular da Universidade Federal de Minas Gerais
Obras: Letramento: um
tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998; Português: uma proposta
para o letramento. São Paulo: Moderna, 2002; Novas práticas de leitura e
escrita: letramento na cibercultura. Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n.
81, p.143-160, 2002; Alfabetização. Brasília: MEC/Inep/Comped, 2001.
Anos
iniciais do Ensino Fundamental
Observação: Esta entrevista foi realizada em
Lagoa Santa (MG), onde era realizada a exposição do Projeto Paralfaletrar, que
tem a consultoria da Professora Magda Soares e da equipe do CEALE-UFMG.
Salto –
Hoje nós temos o Ensino Fundamental ampliado: a criança com seis anos já entra
no primeiro ano desta etapa da escolaridade. Como podemos pensar situações de
aprendizagem que coloquem essa criança em processo de alfabetização e
letramento?
Magda Soares – Essa criança, na verdade, já deve ter sido colocada na situação
de alfabetização e letramento na educação infantil, uma vez que não se pode
pensar que a criança está inaugurando seu processo de letramento e de escrita
aos seis anos. Antes até de chegar na educação infantil, ela está convivendo
com leitura, material escrito, mesmo nas camadas populares, pois nós vivemos
numa sociedade grafocêntrica, cercada de livros e escrita por todos os lados.
Então, é uma continuidade. A primeira coisa é que, aos seis anos, não é um
momento de inauguração, é um momento de continuidade. É preciso ver em que
nível a criança está de apropriação, tanto do sistema de escrita, quanto do
processo de letramento para, a partir disso, criar situações em que esse
processo tenha continuidade.
Salto –
Como podemos conceituar letramento?
Magda
Soares – Aqui, nesta exposição, nós estamos rodeados de atividades de
letramento. São crianças que estão em fase de alfabetização, temos aqui
trabalhos de crianças desde a creche até o segundo, terceiro ano, no novo
modelo, considerando este o terceiro ano das crianças que entraram aos seis
anos. São crianças em processo de alfabetização, de apropriação do sistema
alfabético e ortográfico de escrita, mas elas estão se apropriando disso no
contexto de letramento, lendo livros de literatura infantil, e a partir daí a
professora trabalha alfabetização. Elas estão escrevendo em situações reais
criadas pela professora, não é uma situação falsa. A literatura dá um apoio
muito forte a esse letramento. Por que, o que é o letramento? São as práticas
de leitura e de escrita. Uma coisa é aprender sistema de escrita, para poder
ler e escrever. Mas isso não resolve o problema da entrada no mundo da escrita.
É preciso saber fazer uso disso, saber escrever uma carta, saber escrever
uma história, saber escrever uma fábula, um convite, etc. Mas fazer isso numa
situação contextualizada, saber para quem eu estou escrevendo, porque estou
escrevendo, tendo motivação para escrever. O papel da professora, da
escola, é criar essas situações que permitam esse desenvolvimento da
alfabetização e do letramento articulados e, ao mesmo tempo, indissociáveis. Eu
acho que essa é a síntese que nós conseguimos fazer agora. Nós tivemos um período
em que ensinávamos o "beabá", para depois a criança praticar isso.
Depois passamos por um período, que foi a época do construtivismo, em que esse
"beabá" foi desprezado, de certa forma, foi marginalizado como um
subproduto do letramento, ou seja, do convívio da criança com o material
escrito. Acho que agora nós chegamos ao momento da síntese, que não é isto ou
aquilo, são as duas coisas ao mesmo tempo, articuladas, embora cada uma com a
sua especificidade quanto à metodologia de trabalho.
Salto
– No primeiro ano do Ensino Fundamental, de que oportunidades de
aprendizagem o professor pode lançar mão para poder trabalhar com essas
questões já aos seis anos?
Magda Soares – Eu não diria que "já aos seis anos", porque este
processo já começou antes. Mas, aos seis anos, o professor vai, talvez, colocar
um foco maior na aprendizagem do sistema de escrita, mas sempre no contexto do
letramento, criando situações de leitura de histórias para crianças. Se eu der
um livro de histórias para a criança, sabendo ler este livro, dando todo
contexto de letramento em que ele foi escrito, as próprias características do
livro – quem escreveu, quem ilustrou esse livro – tudo isso interessa muito à
criança, que está na fase da fantasia. Lemos a história para a criança e, depois,
trabalhamos algumas frases, algumas palavras. Ao invés de você buscar "A
Eva viu a uva", vamos buscar uma frase que está no livro, contextualizada
para a criança, aquela palavra central. Vamos pegar o LOBO da história da
Chapeuzinho Vermelho, e trabalhar o LOBO: escrever LOBO no quadro, trabalhar
fonologicamente a palavra lobo, e dividir as sílabas – "o LO, se eu trocar
o O por A vai ser o quê?" "Vai ser LA". É uma atividade lúdica,
em que as crianças se divertem muito. Nós temos provas disso aqui neste
município (Lagoa Santa), como as crianças gostam dessa articulação: de pegar o
LOBO da história e transformá-lo em uma palavra a ser analisada.
Salto –
Nós tivemos a oportunidade de gravar aqui, em Lagoa Santa, uma atividade em que
a professora começava a contar a história, que era uma fábula de Monteiro
Lobato, apresentando a capa do livro, a contracapa, abordando quem seria o
autor, falando da editora. Qual a importância da apresentação destes elementos
do livro para as crianças?
Magda Soares – Uma das facetas importantes do processo de letramento, sobretudo
no plano atual, é conseguirmos contaminar as crianças com o prazer de ler o
livro, com o gosto da leitura, com a paixão da leitura, que a gente tem perdido
muito. E há razões para isso, que não interessa dizer aqui. Nós temos
trabalhado muito o livro como um objeto cultural, e não só o livro como
portador de texto, mas o livro como objeto cultural. A gente faz as
crianças cheirarem o livro, pegarem o livro, ver que o livro é um objeto que tem
suas partes, como nós temos o rosto, as costas, as pernas, os braços. O livro
tem a lombada, a capa, a quarta capa, e as crianças gostam muito disso. A ponto
de vermos, frequentemente, crianças chegarem à biblioteca da escola e pedirem
assim: "Essa semana eu quero levar para casa um livro, mas eu quero um
livro que tenha lombada". E eu perguntei a uma criança: "Por que você
quer um livro que tenha lombada?"; "Porque ele fica em pé."
Esses livros infantis são muito fininhos, tanto que, na nossa biblioteca, eles ficam
expostos; mas o livro mais grosso, de capa dura, ele fica em pé. E a criança
queria um livro que tivesse lombada, e vemos como é importante isso: a criança
tem uma relação com o livro, que é uma relação com o objeto cultural.
Salto –
Fale sobre a riqueza que esse trabalho nos apresenta, e da especificidade
lúdica que um trabalho como esse de alfabetização e letramento vai exigir, vai
requerer.
Magda Soares – Eu acho que o que fica mais forte nesta exposição é observar um
aspecto importante: costuma-se criticar e temer que, nessa entrada da criança
aos seis anos no ensino fundamental, ela seria impedida de brincar, etc. Isso é
uma falta de visão de como a alfabetização e o letramento podem ser atividades
lúdicas, que envolvem muito a criança, tanto no aprender o sistema de escrita
quanto, sobretudo, na aprendizagem da leitura. Como estamos vendo aqui, por
exemplo: a criança trabalhando com trava-línguas. São crianças de seis anos,
estão no 1º ano. Trava-línguas, o que é? É uma brincadeira, uma brincadeira com
a escrita: "Papagaio come milho, Periquito leva a fama. Cantaram uns,
choraram outros. Triste sina de quem ama". Isso está desenvolvendo a
consciência fonológica, que é fundamental para a alfabetização e, ao mesmo
tempo, a criança está escrevendo, está desenhando, está montando o caderninho
dela de trava-línguas, com editora, com conceito de editora, conceito de capa,
tudo isso ao mesmo tempo.
Sobre a história em
quadrinhos e o relatório: Nós colocamos muita ênfase no trabalho com gêneros diversos,
que é algo fundamental para o letramento. Tempos atrás, só se trabalhava com a
criança a história. A criança gosta de historinha, então devemos trabalhar só
com histórias? Não. É preciso trabalhar com todos os gêneros. Por exemplo: aqui
são crianças de Infantil 2, crianças de 5 anos, já trabalhando com história em
quadrinhos e relatório. Elas já conseguem escrever o nome dos autores, o nome
da escola, a história que leram, eles fazem a ilustração da história. Trabalham
com as características da história em quadrinhos: as figuras, o uso do balão,
eles ditam para a professora as falas, e as que já sabem escrever, escrevem
diretamente. Estão criando o conceito de escrita de história em quadrinhos, o
uso dos balões da história em quadrinhos.
Sobre a história
da Dona Baratinha: Foi contada a história, mostrou-se o livro, o ilustrador, o
autor, etc. Depois, as crianças fizeram um livro e, quando elas fazem, sabem
que tem a folha de rosto, e elas usam essa terminologia: "Ana Maria
Machado contou e o terceiro ano recontou!". É um reconto da história da
baratinha. Todos escrevem seus nomes e reescrevem a história. O interessante é
que, quando dizem que ela vai casar, criam um livro de noivas, com vestidos,
uma revista de noivas, para Dona Baratinha escolher o vestido dela. A criança
vai descobrindo o uso da escrita para várias finalidades. Tem o convite de
casamento. E a professora traz um convite de casamento para as crianças, mostra
o convite e diz a finalidade daquele convite, e para onde vão os convites. E
muitas das nossas crianças são de camadas populares e não vivenciam o uso de
tudo isto. Tem a receita do bolo, elas discutiram como se constrói uma receita,
viram livros. Construíram um mapa da festa e, assim, articulam este
conhecimento com outras áreas. Trabalha-se o bilhete contextualizado com a
história. É lúdico, as crianças se divertem para criar isto. Pensam no texto
para a internet, a venda do livro da Dona Baratinha, o pagamento que pode ser
feito por vários cartões. E, dessa forma, trabalham os vários gêneros a partir
da história que está aqui. Elas estão aprendendo a ler e a escrever os
diferentes gêneros de leitura e escrita que circulam na sociedade. Não só a
ler, mas a reconhecer e a escrever também.
Salto – E
qual a importância desse processo de alfabetização para o processo inteiro de
uma educação ao longo da vida?
Magda
Soares – Sem esse processo inicial, a educação não vai para frente. Eu tenho
uma história interessante na minha vida profissional, porque eu comecei
trabalhando com ensino médio, e aí eu passei para a segunda etapa do ensino
fundamental, e pensei: ainda não é aí que eu tenho que trabalhar. Passei a
trabalhar com pesquisa, a realizar estudos na prática com as séries iniciais, e
de um tempo para cá percebi que tinha que ir para a educação infantil e
para a creche, pois é aí que está a base. Se nós não formamos e não
construirmos o alicerce aí, não há futuro para essas crianças. Porque sem
dominar a leitura e a escrita e as práticas sociais de leitura e de escrita,
eles não têm um futuro garantido na vida de aprendizagem, para aprender
Geografia, História, até chegar ao ensino superior. Sem essa base não é
possível. E na vida pessoal, profissional também, porque, em nosso mundo, se a
pessoa não está inserida no mundo da escrita dificilmente vence, ou até mesmo
não vence.
Roger
Chartier
Realizada em: 25/6/2004
Atuação: Professor e
Diretor do Centro de Pesquisas Históricas na École des Hautes em Ciências
Sociais na França.
Obras: História da
vida privada: da Renascença ao Século das Luzes, em co-autoria com Philippe
Ariès pela Companhia das letras, 1991; A ordem dos livros: leitores, autores e
bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UnB,
1994; A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1998.
Evento
Alagoas
Salto – A primeira
pergunta que vamos fazer tem como ponto de partida um de seus textos, no qual o
senhor assinala que o texto eletrônico nos é apresentado como uma revolução,
mas que na história do livro já houve outras revoluções no campo da leitura.
Por que a idéia de revolução associada a mudanças no campo da leitura?
Roger
Chartier – Em primeiro lugar, porque os historiadores gostavam de uma ruptura
radical, que separa o presente do passado, que permite estabelecer uma
cronologia bem clara quanto à evolução histórica, e daí talvez o uso ou o abuso
da palavra revolução dentro de todo o marco do trabalho historiográfico. Neste
caso, os historiadores da cultura escrita designaram diversas revoluções,
algumas que têm a ver com a técnica de reprodução dos textos. Evidentemente, a
revolução da metade do século XV, com a invenção da imprensa por Gutemberg, é
uma revolução tecnológica, e outras revoluções têm a ver com a forma do próprio
livro, o suporte, em suas estruturas fundamentais. Por exemplo, no começo da
Era Cristã, se inventou o livro tal como ainda o conhecemos, quer dizer, um
livro composto por folhas dobradas, páginas, encadernação, um livro totalmente
diferente do que leram Platão ou Cícero, na Antigüidade grega ou romana, que
era o livro em forma de rolo. E um outro nível, que você já menciona, que são
as revoluções da leitura. No século XVIII, pensou-se que havia uma revolução da
leitura, porque o que havia era uma leitura tradicionalmente ligada a um
conjunto limitado de livros lidos, relidos, a uma leitura que sempre conservava
uma espécie de relação de autoridade, ou de sacralidade. E, com a cultura
escrita, este tipo de leitura foi substituído por uma maneira mais rápida, mais
efêmera, mais devoradora de ler. E aí surge a idéia de uma revolução extensiva
da leitura que, supostamente, havia substituído uma leitura intensiva. No
século XIX, a alfabetização generalizada, por um lado, e por outro lado, a
difusão de novos objetos impressos, tais como os jornais, por exemplo,
configuraram uma revolução que se identificava com uma democratização da
leitura.
Os historiadores da Idade Média pensavam também em uma revolução, mas de maior
duração, que era este o processo através do qual os leitores, mais hábeis e
mais numerosos, adquiriram a possibilidade de ler como nós, silenciosamente, só
com os olhos, enquanto nos primeiros séculos da Idade Média se necessitava ler
em voz alta para entender o texto. Tudo isso constitui um repertório de
revoluções, da técnica, do suporte, da prática de leitura. É possível discutir
se, a cada vez, o diagnóstico de revolução é o melhor, porque se pode pensar em
mutações, em transformações, sem necessariamente implicar o conceito de
revolução. Para mim, me parece que hoje em dia, ou no futuro, poderemos falar
de uma revolução que se entrelaça com a técnica eletrônica. Porque, pela
primeira vez, estes três níveis: o nível da técnica, o nível da forma de
suporte e o nível da prática de leitura se transformaram ao mesmo tempo. Quer
dizer que a textualidade eletrônica é, evidentemente, uma revolução
tecnológica, que transforma totalmente a forma de inscrição da cultura escrita,
substituindo pela tela do computador todos os objetos e a cultura impressa: o
livro, o jornal, a revista, etc. E isso implica, ou permite, uma transformação
da relação com o texto escrito pelo leitor. Por um lado, criando a multiplicação
dos vínculos e, a partir daí, uma hipertextualidade disponível para o leitor;
e, por outro lado, impondo uma leitura descontínua que tem formas e práticas
totalmente diferentes da leitura diante de um livro ou de um periódico.
Digo-lhe mais, antes, nunca aconteceu isso. Quando se inventou o Codex, livros
dos séculos III, IV, até o X da Era Cristã, não se mudou a técnica utilizada
para copiar os textos, nem antes nem depois, a única técnica disponível era a
cópia à mão. Quando Gutemberg inventou a imprensa, não mudou a estrutura do
livro. Um livro manuscrito ou um livro impresso têm a mesma estrutura
morfológica: folhas, páginas, encadernação. E as revoluções da leitura que
mencionei também se desdobraram numa estabilidade tecnológica: a leitura silenciosa
da Idade Média foi inventada e construída dentro do mundo da cultura
manuscrita, e a revolução da leitura do século XVIII foi instalada dentro de
uma estabilidade técnica da imprensa de Gutemberg. É também dentro do mundo da
cultura da imprensa que podemos considerar uma revolução democrática, quer
dizer, uma revolução da leitura, no século XIX. Daí a importância das
transformações do presente, porque, ao procurar impor uma vinculação,
encontrar-se-á, previamente, a história de longa duração da cultura escrita.
Salto – Em que
medida a internet vai substituir os impressos: periódicos, livros... Os
leitores se tornarão mais seletivos, mais dispersos?
Roger
Chartier – Essa é uma questão muito profunda. Em primeiro lugar, estou pensando
nos diários (jornais). Efetivamente, parece que podemos ler o mesmo jornal em
uma forma impressa, ou na forma eletrônica. De fato, não lemos as mesmas coisas
porque na forma eletrônica se procura um artigo particular, a partir de uma
ordem hierárquica, a partir de rubricas, temas, palavras-chave, e desta maneira
se lê um jornal diário, um pouco como se lê uma enciclopédia ou um dicionário.
Por outro lado, quando se lê o mesmo artigo em forma impressa, o leitor,
inconscientemente, constrói um sentido para o que lê, a partir da relação com a
mesma página ou dentro do jornal como um todo, incluindo os artigos, colunas,
publicidade, imagens, etc. Vê-se que há duas lógicas de leitura totalmente
diferentes: uma lógica enciclopédica e hierárquica, e a outra, uma lógica
espacial e contextual. Daí, quando se fala de um jornal, e mesmo de uma
revista, a possibilidade de ler um artigo sem saber nada dos outros artigos
publicados no mesmo número do jornal, ou da revista, pode representar o risco
de o leitor não perceber qual é a intenção global, crítica, ideológica e
intelectual que governa a produção da revista como tal, ou do jornal como tal.
E daí a pertinência da pergunta para o livro, porque, se se aplica ao livro
esta mesma técnica, vê-se, efetivamente, que se podem extrair as passagens
particulares sem a percepção nem o conhecimento da totalidade da obra como
livro. A ambigüidade vem de que, para nós, o livro é, ao mesmo tempo, um objeto
diferente dos outros dentro da cultura imprensa, cada um pode ver e saber que
um livro não é uma revista, não é um arquivo, não é uma carta pessoal, etc. É
um objeto que tem sua singularidade, mas também é uma obra. Identifica-se, por
exemplo, o livro de Umberto Eco como um objeto material, é um objeto material,
mas quando se diz isto, o que se evoca é a obra de Umberto Eco. A partir deste
momento, vemos que o que se passa é a destruição desta vinculação tão forte
entre um objeto particular e o conceito de obra. A partir deste momento, ler
uma novela ou um livro de história como se lêem os artigos de um jornal
eletrônico é transformar a relação com o texto, é extrair fragmentos totalmente
separados do contexto global da identidade da obra. O que sugere sua pergunta é
que, finalmente, na técnica eletrônica, cada texto pode ser considerado como um
banco de dados. Quer dizer, um repertório do qual se extraem fragmentos, sem
saber, sem perceber, sem conhecer a totalidade dos elementos, que estão juntos
com esse fragmento. Talvez para um banco de dados não seja um obstáculo. Ao
contrário, permite ir diretamente ao fragmento que é útil, mas, para uma obra
que foi concebida, em sua lógica, inteira, com um projeto estético,
intelectual, um projeto ideológico, é uma forma, me parece, muito arriscada,
porque destrói o próprio conceito do livro como obra. É a razão, terceiro
ponto, pela qual me parece que isto se refere a um futuro, tal como o podemos
imaginar nos séculos XXII, XXIII, XXIV, mas, para nosso século, parece-me que a
conclusão é a de uma coexistência, segundo os usos particulares, das técnicas,
das diversas formas. Pela primeira vez na história da humanidade, podemos
dispor da possibilidade de escrever à mão, de receber, de produzir uma longa e
ampla cultura impressa, e utilizar a tecnologia eletrônica. Seria totalmente
absurdo pensar que uma delas substitui todas as outras. Essa é uma experiência
que as editoras fizeram recentemente, para as enciclopédias e os dicionários:
evidentemente, a forma eletrônica é a mais sutil, porque permite extrair
informações sem perder tempo, porque permite atualizar o conteúdo das notícias
segundo as mudanças que estão ocorrendo no mundo. E aí, como sabemos, a
Enciclopédia Britânica e a Enciclopédia Universal decidiram publicar unicamente
numa forma eletrônica, mas os editores que tentaram na França (não sei em
outros locais) lançar coleções de romances, livros de histórias, ensaios em
forma eletrônica fracassaram, e finalmente abandonaram o projeto, como se os
costumes de leitura, os costumes do leitor, diante deste gênero, supusessem a
necessidade de considerar a obra em sua totalidade e em sua coerência. Em um
livro impresso, não é necessário ler todas as páginas. Cada um pode eleger,
extrair, folhear, porém o que se impõe é a totalidade da obra através da forma
material, e não é a mesma coisa folhear um panfleto de 24 páginas ou um romance
de 500. E se vê que aqui há a visão, a percepção, quase inconsciente, física,
num certo sentido, da obra como tal. E daí, me parece que já entramos num mundo
de uma coexistência, algumas dessas não pacíficas, mas que coexistem entre as
três modalidades de transformação, de transmissão do escrito. É possível
escrever a cultura manuscrita, a cultura impressa e todos os textos da tela do
computador.
Salto – Qual é a
sua opinião sobre o uso do livro didático na escola?
Roger
Chartier – Essa é uma questão que devemos analisar com toda a prudência: me
parece que podemos pensar em maus ou bons usos dos livros; quando se impõe uma
forma de cultura totalmente livresca, sempre há o risco de afastar os alunos da
realidade social. Porém, se o livro é o centro de um conjunto de práticas, a
palavra viva, a construção coletiva de uma identidade, de um projeto escolar,
me parece que o papel do livro é absolutamente fundamental, porque até agora o
livro, desde a Antigüidade Grega até o presente, foi, se não o único veículo, o
veículo essencial da transmissão dos conhecimentos, saberes, prazeres, que cada
indivíduo pode ter com o passado, com o presente, ou com a sociedade em que ele
vive. Costuma-se organizar, a partir do livro, ao redor do livro, uma série de
práticas culturais que me parecem importantes. Aqui também penso que, a cada
dia, os mestres ou mestras inventam uma forma de fazer isto e, quando vemos nas
escolas os projetos de uma pesquisa coletiva, quando se organiza uma relação
entre palavra viva e o texto escrito, tudo isto me parece uma maneira de
responder à sua pergunta. Outra coisa que me parece importante é que, no
Brasil, havia uma experiência interessante. Quando se fala de livro e da
escola, se fala sempre no livro dentro da escola. E o importante é que as
crianças vão encontrar livros na escola. Por diversas razões, econômicas ou
culturais, nunca vão encontrar livros em sua casa, e daí é uma iniciativa
fundamental, me parece, quando a escola ajuda na presença do livro fora dela.
Se há bibliotecas escolares abertas ao público, ou como o que foi feito há
alguns anos aqui, que as crianças, ao sair da escola, saíam com cinco livros
que eram breves, muito elegantes, muito agradáveis de ler e que permitiam
transferir para a casa do aluno algo da presença livresca da escola. E os
editores brasileiros haviam composto um pacote de cinco livros: um livro de
poesia, um romance, um de contos, um de tradução de livro estrangeiro, em uma
forma abreviada, se fosse uma obra imensa, ou um livro, que era muito original,
que era uma obra teatral. Parece-me que é um exemplo desta idéia, do livro
recebido dentro da escola, mas projetado para fora dela.
Tradução: Maria
do Carmo Cardoso da Costa
Entrevista
com Paulo Freire
Jornal dos Professores – Paulo Freire, 70 anos, professor falando com os professores. Nós
poderíamos começar assim: quando surgiu em você o desejo de ser professor? Como
foi?
Paulo
Freire – Fui um menino cheio de “anúncios docentes”, o que não significa que eu
tenha nascido professor. Agora quando eu me revejo, me retorno – coisa que
gosto de fazer – me lembro que era um menino curioso. Um professor que não
exerce a curiosidade está equivocado. Eu me perguntava muito, perguntava aos
outros, era metódico no estudo. Sofria quando não aprendia e receava que isso
prejudicasse o meu próprio processo de estudo. Tinha certas preocupações que a
gente pode chamar de pedagógicas. Na adolescência, sonhava tanto em ser
professor que às vezes, para mim, era difícil perceber que estava no nível
imaginário e não do real: eu me via dando aula.
O que o levou ser professor?
Eu
dizia que havia duas razões visíveis para eu ter me entregue ao Magistério. Uma
era a necessidade de ajudar. A minha família sofreu o impacto da crise de 1929,
tivemos que nos mudar do Recife para Jaboatão. Foi uma espécie de decisão
mágica da família, para ver se fora seria melhor. Mas não deu certo.
A
falta de dinheiro e o endividamento continuaram lá. Quando eu tinha meus 18 ou
19 anos, estudante de ginásio, eu precisava ajudar em casa. Meus dois irmãos
estavam trabalhando normalmente, muito sacrificados; minha irmã estava no
último ano da Escola Normal e a única maneira de eu ajudar era ensinando.
A
segunda, na verdade, foi uma questão de gosto intelectual. Eu era muito menino
quando descobri certa paixão pelos estudos de Gramática e deis saltos por mim
mesmo.
Eu
li todos os bons gramáticos brasileiros e portugueses que consegui comprar em
sebos, tinha uma paixão enorme e foi exatamente me servindo dos conhecimentos
que fui adquirindo que me tornei, antes mesmo de estar dando aula, competente
para dar aula. Dando aula a jovens de classe média, tão apertados quanto eu em
Jaboatão, fui me tornando professor. Quando digo que ninguém nasce professor,
eu tenho a experiência viva disso.
Como era a vida em Jaboatão?
Muito
dura, muito sofrida. Meu pai morreu quando eu tinha 13 anos, o que agravou
ainda mais a crise. Eu me lembro de certos momentos da vida de minha mãe e
quando em me lembro deles tenho uma sensação de mágoa. Era, por exemplo,
acompanhando-a que eu pude ver com que rosto de vergonha, de intimidação, ela
ficava quando o sujeito da venda – minha mãe ainda não havia posto o corpo
inteiro na porta – gritava por trás do balcão que não venderia a ela porque a
dívida já era grande e que não acrescentaria mais.
Ela
nem balbuciava um “desculpe” ou “muito obrigada”, voltava-se para a rua e saía
e eu atrás, sem comentários também. Essa coisa me marcou profundamente.
Eu
cresci com um baita respeito por ela e também com o senso de muita
responsabilidade perante ela. Acompanhei muito de perto a dor dela, seu
sofrimento e fiz de tudo o que pude durante toda a minha vida em termos de
ajudá-la, de mantê-la. Até a morte dela eu não a vi mais, porque estava no
exílio e não podia voltar ao Brasil. Isso na verdade não tem muito a ver com
sua pergunta. Faz parte da minha trajetória, da minha rua, da minha estrada.
Foi um beco em que entrei agora.
Voltando à sua experiência como
professor. As suas primeiras aulas foram particulares?
Meus
alunos eram meus próprios colegas. Eram muito bons em outras disciplinas e não
em Língua Portuguesa.
Com
alguns eu permutava, ensinavam-me Matemática, por exemplo, e eu o Português.
Outros pagavam. Anita, minha mulher, à vezes reclama porque faço algumas coisas
sem cobrar e eu até nunca disse a ela: no tempo em que na verdade precisei eu
cobrei e fui muito rigoroso nas cobranças. Mas bastou não precisar muito que eu
já reduzi o rigor. Eu sou um pouco gratuito e não me arrependo.
Você também usufruiu de
gratuidade na sua formação…
O
pai de Anita, Dr. Aluisio, dono do Colégio Osvaldo Cruz, em Recife, foi
absolutamente gratuito comigo, me possibilitando estudar sem pagar. Não foi
bolsa aquilo. Dr. Aluisio me permitiu, me ofereceu estudo como um direito. Ele
nunca me chateou e nem à minha mãe para saber se a gente iria e se podia pagar.
Não importava ao Aluisio até seu eu pudesse pagar. Ele disse: “eu acredito no
que a mãe dele em disse”.
E sua primeira aula?
O
interessante é que com 16 anos eu escrevia rato com dois erres e interessante
com cedilha e aos 19 anos eu já era professor e, cá para nós, eu me achava um
grande professor.
A
primeira aula particular foi lá mesmo na minha casa, numa salinha. Agora, na
homenagem de 70 anos que fizeram para mim em Pernambuco, meu primeiro aluno foi
lá, com a esposa dele, me abraçar. Foi meu primeiro aluno. Teve a coragem de
fazer essa experiência.
E como foi essa primeira aula?
Eu
devo ter começado a propor a ele uma compreensão gramatical da estrutura do
discurso. O interessante é que naquela época, sem saber nada, eu já partia para
compreender as palavras nas relações que elas têm dentro do texto e não as
palavras isoladas. Por exemplo, eu nunca dei aulas de verbo, a não ser pedindo
aos meninos que criassem sentenças com os verbos.
Esta sua faceta como professor
de Português não é muito conhecida. Como você enveredou para a Pedagogia?
Houve
um momento em minha vida em que eu era conhecido na roda dos professores e
também dos colégios como um dos bons professores de Língua Portuguesa. Houve
outro momento da minha vida quando, deixando o Magistério, tive o convite para
trabalhar no Serviço Social da Indústria, o SESI, recém-criado pela
Confederação Nacional Indústria e instituído por decreto presidencial, num
momento político que revela certa posição crítica das chamadas forças
produtoras das classes dominantes brasileiras, empresariais. Eu tenho quase
certeza de que em certo momento dos anos 1940 a classe dominante do Centro-Sul,
preponderantemente de São Paulo, anteviu que o processo de presença popular da
história política brasileira, a classe operária de São Paulo, seguindo o
exemplo dos anos 1920 (com a chegada dos italianos radicais, de esquerda,
anarquistas) deu um baita impulso à consciência operária brasileira. É como se
a classe dominante dissesse naquele momento: “é preciso fazer o possível para
continuar ocultando certas verdades”.
O
SESI, o SESC, o SENAI e o SENAC nasceram com essa tarefa, de dourar a pílula,
de fazer uma assistência que se estendesse ao assistencialismo e com o qual se
faria política, mas a política da classe dominante.
Eu
até digo isso sem nenhum medo de estar cometendo uma injustiça. A análise
correta para mim é essa. Vejam que coisa maravilhosa.
Eu
fui convidado para trabalhar esse recém-fundado SESI de Pernambuco e foi
exatamente a minha prática dentro do SESI que me radicalizou.
Você era um agente de ocultação…
Eu
nunca fui um agente da ocultação e me antecipei como desocultador. Agora, no
texto que estou escrevendo, em que retomo a “Pedagogia do Oprimido” faço uma
incursão à minha passagem pelo SESI e digo que se bem que ela sozinha não
explica a “Pedagogia do Oprimido”, sem ela, porém, eu não posso explicar.
Esta
passagem foi e é um dado fundamental que me explica como educador progressista
hoje.
Quer dizer que, mesmo servindo
aparentemente à classe dominante, você pôde realizar um trabalho de
conscientização nos filhos da classe operária…
Por
aí você vê como estavam equivocados e continuam alguns, espero, em menor
número, os sectários de esquerda que afirmavam, por exemplo, que aceitar um
simples convite para ir a uma universidade dos Estados Unidos era vender-se ao
imperialismo e que esse fato, por si só, significava um atraso ideológico,
político. Isso não revela cientificidade nenhuma; revela nenhuma compreensão
crítica da História; me dá mais pena do que raiva.
E os empresário paulistas, a
FIESP, como está hoje?
Naquela
época, os empresário eram uma elite de intelectuais – como Roberto Simonsen,
pai do Mario Henrique, que era um homem inteligente, grande economista – que
foram para mim muito mais clarividentes do que alguns reflexos daquela geração
como o Amato. Quando você lê o que diz Amato hoje não tem nada a ver com a
clarividência que tinha o Simonsen, por exemplo. Eu acho que houve certo
retrocesso na classe dominante.
Mais selvagem…
Mais
dominante, mais selvagem.
Conte mais sobre a
“contribuição” do SESI na sua formação.
No
SESI em aprendi a estabelecer certa comunicação com a classe trabalhadora,
urbana e rural. O SESI me deu essa chance. E foi a aprtir do SESI que eu passei
a dar saltos dentro do próprio município e cada vez mais eu comecei a ser
chamado para discutir termos pedagógicos. Então, eu fui me tornando um pedagogo
também, um cara que pensava a prática educativa e que por isso mesmo propunha
certa teoria dessa prática. Eu estou escrevendo muito sobre isso. Agora preciso
até me conter.
Conte um pouco a sua
experiência com adultos, as reuniões de Pais e Mestres, enquanto diretor da
Divisão de Ensino do SESI.
Na
Divisão de Educação aprendi as técnicas diferentes de ter encontro com grupos
de adultos, aprendi, retifiquei os erros que cometi através das críticas que os
operários me faziam, começando pelas coisas mais tradicionais até chegar a uma
coisa que, eu acho, nunca foi feita em termos de prática na escola, que a gente
chamava naquela época, pomposamente, de Círculo de Pais e Mestres e que eu
amenizei, chamando de Pais e Professores.
Comecei
a fazer círculos, reuniões programadas e conseguia uma seqüência enorme.
Discutia
antes com os professores a problemática fundamental que eles viam naquela
escola, escolhíamos a temática parcial, porque caberia à família dar a outra
ponte. A primeira eu fiz. Daí em diante, terminava uma reunião, fazia-se a
temática da próxima, o que eu chamava de “carta temário”. Os professores tinham
seminário comigo sobre o tema que ia ser discutido na próxima reunião.
Na
“carta temário” eu desafiava os pais para que eles discutissem com os
companheiros de rua, com os vizinhos. Eles precisam trazer para o Círculo não a
opinião deles, mas da rua toda, do bairro, se possível. Resultado: passamos a
ter 95% de frequência.
Isso acontecia em uma Escola?
Não.
Eram vinte e tantas Escolas do SESI.
O interessante é que o SESI lhe
dava espaço, apesar da ideologia…
Sim,
eu tive todo o espaço para desocultar, apesar da ideologia ser ocultadora.
Você aproveitou a estrutura dos
capitalistas para fazer exatamente o contrário da ideologia do capitalismo…
Claro,
para fazer um trabalho democrático.
Houve algum episódio nesses
Círculos de Pais e Professores que você gostaria de contar?
Eu
Nunca vou esquecer de uma coisa que está dito em inglês, porque contei isso nos
Estados Unidos e saiu publicado. Um Círculo de Pais e Professores em que o tema
geral que afligia os pais e as famílias era o da disciplina na família, na
Escola: o prêmio do castigo.
Eu
tinha feito uma pesquisa no SESI com 1.500 famílias e tinha encontrado um
resultado trágico: a preponderância era de castigos físicos e violentos.
Crianças amarradas com cordas, meninos que apanhavam surras. A única área em
que o castigo sumia e caía na licenciosidade mais absoluta era a área praieira.
Nesta zona, de pescadores, a relação pai-autoridade-liberdade era total a
permissividade. Eu tinha um resultado diante de mim que era absolutamente
negativo dos dois lados.
Para
discutir o problema do castigo, do prêmio, na relação autoridade-liberdade eu
resolvi falar um pouco sobre o código moral da criança, mostrar que ele não
tinha nada a ver com o código moral do adulto e que a permissão e a premiação
passam pelo código moral.
Ou
passam aceitados ou passam rejeitados, mas passam sempre.
Para explicar essa coisa em me baseio todo, já que naquela época, em Piaget.
Você pensava que eles
entenderiam Piaget?
Eu
teria que fazer a tradução, adequar o discurso científico de Piaget ao discurso
concreto da classe trabalhadora. Ou eu era competente para fazer isso ou meu
discurso não seria inteligível. Na época eu não era capaz de fazer isso. Eu não
entendia como é que não me entendiam. Era tão claro para mim.
Como é que você aprendeu isso?
Com
exemplos. Não foi invencionice da minha cabeça. Eu precisei descobrir que
estava errado. Então neste tal dia em que eu falei de como alcançar a criança,
disse que um dos caminhos era exatamente o diálogo com a criança. Quando
acabei, um sujeito se levanta de lá e diz: “nós acabamos de ouvir o Dr. Paulo
Freire que falou uma fala realmente muito bonita. Agora eu queria dizer umas
coisas ao doutor que eu acho que meus companheiros todos concordam”.
Era um dos pais?
Sim,
um dos pais. Um sujeito de cara forte mas mansa. Um cara de sabedoria, que falava
com certa condescendência, expressava um certa pena de mim. Ele olhou para mim
e disse simplesmente “doutor, o senhor sabe onde a gente mora?”. E descreveu,
afinal, a geografia da casa dele, a história e a cultura da casa dele. As
necessidades dele, da mulher, dos filhos, as pressões para sobreviver a tudo
isso. A dor, o cansaço. Chegar em casa de noite, morto de fome e cansaço tendo
que acordar no outro dia, às 4 horas da manhã, portanto, tendo que dormir.
E
os meninos endiabrados, diabólicos, fazendo o maior barulho do mundo. “Numa
situação como essa, doutor, o pai bate e não dialoga. Mas não é porque ele não
ama. É porque não pode amar como o senhor pode”. E prosseguiu: “eu vou dizer ao
senhor como é a sua casa, eu nunca fui lá, mas vou descrever”. E descreveu
perfeitamente a minha casa.
Quer dizer que nós temos um
país com esperança ainda. Um homem do povo criticar…
Ainda são possíveis as reformas de base…
Exatamente,
que beleza! Eu vivi estes momentos de esperança, lindos. Que consciência de
classe tinha esse homem, sem nunca ter lido Marx nem Engels. Como, a partir do
conhecimento da geografia da casa, ele introduzia a vida. Ele sabia os
conhecimentos que você tinha e, inclusive, a forma errada de conhecer. Hoje,
sem saber seu nome ou se vivo está, ainda não creio. Rendo, através do jornal
de um sindicato de trabalhadores, a minha homenagem e meu agradecimento a esse
homem. Ele foi meu grande pedagogo.
Naquela noite, qual foi sua
reação?
Eu
confesso a vocês que naquela noite fui afundando na cadeira. Se houvesse
possibilidade, eu me escondereia. Às vezes me dá gana de ir lá, ver se ainda
existe, perder a humildade e botar uma placa: “AQUI PAULO FREIRE APRENDEU QUE
NÃO É POSSÍVEL FAZER SEU DISCURSO PARA O POVO, QUE É PRECISO PRIMEIRO APRENDER
A COMPREENSÃO DO MUNDO QUE O POVO ESTÁ TENDO, PARA DEPOIS FALARMOS DA SUA
INTELIGÊNCIA”. Dá vontade de fazer isso, mas seria arrogante demais.
O que ficou deste aprendizado
na sua formação, nas suas obras?
Foram
essas coisas que me trouxeram mais tarde como pedagogo, a fazer afirmações como
esta, por exemplo, e até hoje, nem todo mundo entendeu: “o ponto de partida de
um projeto educacional está na identidade cultural dos educandos e não dos
educadores. Está na compreensão de mundo dos educandos. Está na sabedoria de
que os educandos estão molhados, ensopados. Não importa que seja saber de
experiência feita, portanto, de senso comum. Ninguém supera o senso comum a não
ser partindo deste nada. Eu não posso superar o senso comum a partir do meu
senso rigoroso. Eu tenho primeiro que assumir a ingenuidade do educando, me
papar dela também, depois dar o braço ao educando e partir para superá-la. Isto
não se faz! A Escola admite que o aluno é tábua rasa para ela. Não traz nada do
mundo e depois que vem para ela continua não recebendo nada do mundo. Só que a
Escola dá. Esta não pode prestar, tem que fechá-la”.
Na história das suas reflexões,
das que vão poder dar o salto, o reposicionamento, tem sempre o momento do
diálogo com alguém qualificado que ajuda este processo…
Ah
sim. Eu tinha com quem conversar, trocar ideias. Em primeiro lugar, eu batia os
papos com Elza, minha primeira mulher, educadora também, a quem devo muito,
porque é difícil você viver 42 anos sem dever a ela e ela a você. Senão é
cínico, é louco!
Em
segundo lugar, eu tinha dois ou três amigos com quem trocava ideia, na acepção
correta. O Paulo Rosas era um deles. Além disso, eu recorria a leituras que
abriam caminho para mim da compreensão da formação social brasileira,
profundamente autoritária. Depois, leituras que me ajudaram a descobrir como
essa ideologia autoritária se reproduzia e como ela se manifestava em
comportamentos diante dos quais eu estava vivendo.
No seu método de descoberta é
interessante como a ideia vem antes da prática: como a gramática e o fascínio
por ela o levam a dar aula. É interessante como é que não é o movimento social
que o mobiliza de início…
Eu
acho que o que houve comigo é que há contigo e com todo mundo. Houve um
movimento dialético. Em certos casos foi minha ideia, abstração que moveu, em
outros, não. Mas sempre a prática testou isso. Quem me faz sair do discurso de
Piaget para discutir Piaget com eles, a partir da concretude deles, foram eles
e foi a minha prática de fazer um discurso sobre Piaget que me ensinou que
estava errado.
Guimarães Rosa, através de um
personagem, diz a certa altura: “Toda ação principia mesmo é por uma palavra
pensada”. Durante décadas se trabalhou com a ideia de que a classe operária
seria a vanguarda das transformações. Neste momento, os trabalhadores passam
por um momento muito complexo. Afinal, quem é vanguarda das transformações?
Será o povo, a classe trabalhadora ou a intelectualidade que não vive as mesmas
condições de necessidades?
A
prática do oprimido para superar a realidade opressora começou na palavra
pensada, que é exatamente o discurso antecipado do oprimido, da história.
Enquanto a classe trabalhadora não tiver a possibilidade de teorizar o próprio
discurso, somos nós, os chamados intelectuais progressistas que temos que fazer
isso, indiscutivelmente. Mas ao fazermos isso, não nos tornamos,
necessariamente, vanguardas ou donos ou senhores do processo. Isso é o que
muitos de nós fizemos, como intelectuais que pensávamos possuir a verdade
revolucionária, que havia sido cientificamente proclamada, mas não
necessariamente realizada.
Mesmo depois dos acontecimentos
no Leste Europeu?
Para
mim, depois de tudo isso que ocorreu no Leste Europeu, eu não vejo porquê me
desiludir da utopia socialista. Eu acho que na história, pela primeira vez, a
gente está diante de uma possibilidade , ao reconhecer que a experiência
anterior do socialismo nasceu equivocada porque se deu toda ela metida numa
moldura autoritária. O que não prestou na experiência do Leste Europeu não foi
o socialismo, não. Foi a moldura autoritária dentro da qual o socialismo se
extraviou. Assim como o que presta no Ocidente não é o capitalismo, não. É a
moldura democrática da qual o capitalismo se serviu. O que a gente precisa hoje
é motivar-se por uma outra luta, ainda pelo socialismo, mas arrebentando as
molduras autoritárias em que foi metido e arrebentando a moldura democrática
que está cobrindo e encobrindo o capitalismo para superar, mesmo agora, o
capitalismo. Do ponto de vista da compreensão histórica, eu nunca estive tão
otimista. Eu nunca percebi um momento tão importante para a prática pedagógica
quanto este.
Uma volta aos anos 60?
Não
voltando ao pedagogismo dos anos 60, em que se pensou que prática educativa,
sozinha faria revolução. Mas agora reconhecendo os limites da prática do
capitalismo e descobrindo a força da educação, que está na fraqueza dela. Elsa
sozinha não faz a mudança social, mas também, a convicção – e aé vem a
fortaleza da Educação – de que não é possível fazer mudança sem ela.
O
que a gente tem a fazer hoje é instalar-ser num otimismo crítico, de que a
prática educativa – que se dirija no sentido de desocultação das verdades – é
absolutamente indispensável à mudança do mundo.
O que leva um jovem hoje a
querer ser professor? O que seria hoje o trabalho do professor no quadro de
desesperança em que o indivíduo já não influi. O que motivaria um professor a
dar aula?
A
boniteza do momento de dar aula independente. Ela faz parte da natureza do ser
da prática educativa. Por isso que eu acho tão importante que o educador se
assuma fazendo boniteza. No fundo, as quatro dimensões da natureza da prática
educadora são: a gnoseológica, a estética, a ética e a política.
A
prática educativa fecha essas quatro dimensões. Como educador, o professor faz
política, então, ele tem que se assumir politicamente. Para saber que ele tem
um sonho que é político. Qual a utopia dele? Que modelo da sociedade ele
gostaria de provocar, de produzir com os outros? Neste momento, independente do
salário, o professor descobre mais boniteza ainda em sua prática.
O
professor, também, tem que mudar a postura. Se é coerente e progressista, o
professor tem que saber que não pode mediar nenhuma atitude dominante. Ele é o
refazedor do feito. Propor ao aluno que re-saiba o sabido, que reconheça o
conhecido, que reproduza o produzido. Isso é produzir uma postura crítica no
educando. Isso só o sujeito faz. E quanto mais você faz, mais se capacita para
trabalhar a transformação utópica da sociedade.
Chamar
o aluno a assumir-se enquanto o conhecedor, não recipiente do conhecimento que
se transfere. É assim que ele vai aprender. O que libertará o menino operário,
se ele entrar num processo de luta política, é a consciência de que pode
conhecer e pode fazer História.
Outras
entrevistas interessantes
Serginho Groisman entrevista Paulo Freire.
Paulo Freire entrevistado no programa 'Matéria
Prima' da TV Cultura
Autor Desconhecido
Ano: (TV Cultura, 1989)
Fonte: http://acervo.paulofreire.org/
Parte1
Ultima Entrevista realizada a Paulo Freire 1° parte. Un
documento fundamental para los que aún no conozcan la obra de este gran
educador
Parte2
Ultima Entrevista realizada a Paulo Freire, un excelente
documento para conocer la vida y obra de este gran educomunicador